Olá Amigos e Amigas,
Disponibilizo abaixo um texto que sempre utilizo como abertura de minhas aulas e oficinas de canto: VOZ – Um Texto de Profa. Dr. Helena de Nunes Wohl Coelho. É um texto muito completo que trata dos aspectos fisiológicos, psicológicos e sociais da voz e do canto. É um texto que, para mim, foi muito impactante e esclarecedor. Espero que gostem!
VOZ
A voz é a utilização inteligente dos ruídos e sons musicais produzidos no interior da laringe com o impulso da expiração controlada, ampliados e timbrados nas cavidades de ressonância e modelados pelos articuladores no tempo, no meio e no estado pulsátil de cada pessoa. A esta definição de caráter eminentemente fisiológico e acústico acrescenta-se o conteúdo psíquico e emocional, isto é, a voz é, também, a expressão sonora da personalidade do indivíduo e o reflexo de seu estado psicológico.
A causa aparente da voz é a vibração das cordas vocais inferiores; a causa real, entretanto, é uma ideia concebida no cérebro. Segundo Gomes (1980), “o processo mental da fonação compreende três fases ou momentos: ideação, imagem verbal e ordem motriz”. O sistema nervoso vocal é o responsável pela transdução da ideia em sinais, pela correção e coordenação de tais sinais, por sua condução, por sua programação nas partes de emissão e pelo desencadeamento da função vocal. A ideia estimula os neurônios corticais (potencial de ação), que produzem um conjunto ordenado de estímulos enviados à zona de Broca (área de integração comum), de onde sairão, na forma de padrões, para serem corrigidos e coordenados no tálamo e cerebelo. Após a codificação precisa de frequência, intensidade e duração, tais padrões serão enviados ao bulbo, onde estão as origens dos nervos motores das partes do aparelho vocal. Cada nervo tem sua função específica, mas pode responder com maior ou menor prontidão variando-se o estado de tensão do indivíduo. A resposta mais precisa ocorre quando a pessoa encontra-se destensionada, o que não implica desleixada ou relapsa. Existe também ao nível nervoso um ponto ideal de equilíbrio. Embora todo nervo, uma vez vencido seu limiar de excitação, evolua em sua função num processo irreversível independente do estímulo original, ele tem seu empenho influenciado pela emoção. A emoção evidencia-se em nosso corpo na forma de uma modificação de equilíbrio na sensibilidade orgânica neurovegetativa e afetiva. O estudo e domínio da emoção, portanto, influenciam o bom funcionamento orgânico e tornam o corpo mais sujeito à vontade.
O funcionamento é o modo pelo qual uma estrutura funcionante viva realiza sua ação. No caso da voz, não existe uma estrutura destinada exclusivamente à sua produção; ela é uma existência que se utiliza de componentes próprios a outras funções do organismo. Segundo Gomes (1980),
o organismo humano não está anatomicamente formado nem preparado para falar. (…) O aparelho fonador é o conjunto de órgãos cujas funções fundamentais e utilização de suas cavidades tem finalidades distintas, mas que o homem as reúne funcionalmente em forma convencional, utilizando os ruídos e sons que nele se produzem e ressoam por simples coincidência, para dar-lhes um significado também convencional e simbiótico, com o que a inteligência elabora, progressivamente, a linguagem.
Desta citação se depreendem duas conclusões de máxima relevância: primeiro, a fonação é aprendida e não inata, segundo, é uma solicitação em acréscimo, um esforço adicional a cada uma das partes do aparelho fonador em sua função original. Para que a aprendizagem da utilização dos recursos vocais proporcione o maior rendimento com o menor desgaste, é fundamental que seus procedimentos conheçam e respeitem a saúde geral do indivíduo. A saúde é o estado pulsátil de equilíbrio dinâmico da estrutura funcionante viva em si mesma e em relação ao seu meio. No momento em que acontece o desequilíbrio consigo mesmo e/ou com o meio, o corpo entra em estado de doença, e esta transição é tênue. Assim sendo, para que a pessoa adquira o domínio sobre a voz enquanto produto do funcionamento do aparelho fonador, há necessidade que se sensibilize para o autoconhecimento e que seja capaz de perceber e cultivar os fatores mantenedores de sua saúde. Também isso é parte integrante da educação vocal. O ato de falar ou cantar com correção, portanto, antes de ser uma técnica de malabarismos estéticos aparentes, é uma postura de vida.
A par do estudo e conhecimento dos componentes físicos, um método de educação vocal deve considerar suas implicações psicológicas. A postura, além de envolver a saúde óssea e muscular de sustentação do corpo, retrata a posição da pessoa frente â vida, pois os dados psicológicos como timidez, agressividade, auto-estima, entre outros, também modelam a apresentação do corpo. A respiração é a maior preocupação, pois, na maioria dos casos, precisa ser “desaprendida”, antes de ser treinada para aplicá-la ao canto ou à fala corretos. O ser humano nasce respirando certo, numa integração absoluta e harmônica com o meio que o cerca. Mas, à medida que vai se tornando adulto, as tensões que o cercam lhe causam ansiedade e angústia. Ele se desintegra da natureza, se afasta da organicidade da vida por ela mesma, em todas as formas; isso faz respirar mal. Sua respiração se acelera e fica mais curta, engaiolada entre as costelas superiores e a clavícula. Isso lhe altera os batimentos cardíacos e o equilíbrio nervoso, gerando-lhe mais tensão, e assim está formado o círculo vicioso. Uma pessoa assim está absolutamente inapta para cantar e, se o fizer, trará para si prejuízos incalculáveis. Os exercícios respiratórios, com o objetivo de redescobrir a respiração natural e dominar a utilização dos músculos abdominais, intercostais e o diafragma para utilizá-los artisticamente, passam também por um questionamento de cosmovisão, por uma reestruturação fisiológica e psicológica frente a vida e pelo desejo de reintegrar-se a ela.
A articulação tem relação direta com a perfeita conformação da arcada dentária, da língua e dos músculos faciais, e depende de treino desde a infância. Considerando que cada músculo ou determinadas combinações de músculos participam da produção de um fonema específico, uma pessoa com solicitação fonêmica limitada terá sua clareza articulatória progressivamente prejudicada com o avanço da idade. Os exercícios de articulação, entretanto, têm uma particularidade geralmente séria em termos psicológicos: são feitos com uso de espelho e gravador, o que, por si só, implica uma possível revisão da auto-imagem. A problemática da auto-imagem também se evidencia no estudo da ressonância: é comum a tentativa de mascaramento das possibilidades reais de timbre e volume em função da imitação de um modelo dado por ideal pelo próprio aluno, ou então – o que é ainda mais grave – pelo próprio professor.
Os assuntos discutidos acima devem ser levados ao conhecimento do aluno no sentido de que ele se sinta motivado a pesquisar e aceitar sua potencialidade vocal, elaborando-a de forma concomitantemente saudável e musical.
In: Coelho, Helena de Souza Nunes Wöhl. Técnica vocal para coros. São Leopoldo, RS, Sinodal, 1994.